Antes de mais, quero ressaltar a natureza puramente
reflexiva do que segue, nada comprometida qualquer esforço por reforçar meus
argumentos a partir de citações de autoridade. Nem socióloga, nem antropóloga,
tampouco filósofa ou psicanalista, o que se projeta de mim neste espaço é uma
tentativa de articulação de pensamentos dispersos e fragmentários.
Ocorre que há dias em que um sujeito desperta mergulhado
numa vontade furiosa de gritar. Mais ainda, movido por uma energia daimônica
que o impele a dizer todas as suas verdades ao mundo, de esbravejá-las, de verem
transformados sua boca e braços numa poderosa metralhadora apontada para a
humanidade (aqui, a imagem da moça com a metralhadora acoplada na perna
amputada no “Planeta Terror” do Tarantino me provoca um risinho sacana).
O meu ponto é o seguinte: creio que seja justo dar-se ao
luxo, ao menos naqueles momentos cruciais e decisivos da vida, de manifestar
verdadeira e honesta ira, a despeito de termos sido ensinados a percebê-la como
“pecado capital”.
Fonte: http://www.rose-mcgowan.com/gallery/albums/Movies/2007%20Grindhouse/Lobby%20Cards/PlanetTerror-LobbyCards_003.jpg
Esboço aqui o embrião de uma reflexão amoral, ainda que
falha, e estou tentada a interpretar as manifestações da ira como o sincero grito
dos injustiçados. Ainda que a injustiça neste caso resida, muitas vezes, na
consciência do irado de ter sido vítima de uma falha grave no necessário
sistema de autocontrole que nos permite viver em sociedade. Em síntese: é preciso
ser hipócrita para existir relativamente incólume neste mundo. E os atenuantes
ou agravantes de nossa hipocrisia cotidiana são, mais do que uma questão de
caráter, ditados por fatores externos, ligados ao nosso instinto de sobrevivência.
Explico: se desejo permanecer num emprego, a despeito do meu desprezo pela
incompetência do meu chefe, não o critico. Simples assim.
Veja, se não estamos sós no mundo e dependemos de uma rede
de relações para existirmos, desde muito cedo aprendemos a calar nossas mais
sinceras opiniões e a frear em nós todo e qualquer gesto que possa ferir,
ofender, depreciar ou mesmo interferir no bem estar de nossos “semelhantes”.
Trata-se de aprender a tolerar, respeitar, em suma, ter bons modos, ser ético,
polido, “educado”.
Se um sujeito é cumpridor das regras de convivência
socialmente impostas e, portanto, vive num esforço diário para exercê-las junto
àqueles que o circundam, é natural que anseie por receber dos que o cercam algo
semelhante.
Não me refiro aqui aos bons modos somente. Refiro-me à
percepção mais ampla e genérica de que toda ação gera, de fato, uma reação. À
ideia, que muitas pessoas rejeitam ou ignoram, de que os seus atos, sejam quais
forem (bons ou maus – vide “a corrente do bem”), refletem na vida não apenas
dos seus entes queridos mas, a imensa maioria das vezes, na de estranhos.
E não me deterei nos excêntricos, nem nos artistas,
intelectuais ou outsiders, que sempre
os houve no mundo, quase sempre minorias marginalizadas por necessidade, desejo
ou oportunidade. Refiro-me ao sujeito ordinário, a mim e, provavelmente, a
você.
Parece-me uma conta fácil de se fazer: o que não desejo para
mim, não proporciono aos outros. Num mundo ideal, viveríamos assim.
O sentimento de injustiça ao qual aludo (e creio ser um
grande motivador para a ira e, por meio dela, para ações deselegantes,
grosseiras, agressivas e - no limite – violentas) deriva, muitas vezes, da
consciência de que a energia investida em viver segundo as regras sociais não
gera um retorno satisfatório. E este sentimento é cumulativo. Nenhum “injustiçado”
consegue com tranquilidade zerar o seu “injustiçômetro” a cada manhã. Muito
embora, é verdade, existam pessoas mais espiritualmente evoluídas, mais
emocionalmente equilibradas do que outras.
Fonte: http://ocaosreina.files.wordpress.com/2011/08/caosreina2.jpg
Para dizer o óbvio: as pessoas são diferentes. Eu prefiro pegar a esteira de Lars Von Trier e
crer que o “caos reina”.
Fomos ensinados a viver “sob controle”. Nossa natureza,
entretanto, é caótica. Não roubamos, assassinamos e violamos por termos sido
ensinados a viver assim, de modo a garantir a sobrevivência dos grupos, fortalecê-los
e, com isso, alcançar a nossa civilidade. E, principalmente, por nos terem sido
impostas regras e sanções, sejam elas oriundas da fé ou do Estado.
O “amor ao próximo” e a “solidariedade” são a versões “hollywoodianas”
de algo em nós – respeitar e ser generoso – que reside no limiar entre o
caráter e a circunstância.
Se eu escolho (em conjunto ou individualmente) um
determinado percurso na vida, que implica em ações cotidianas no meu universo familiar,
afetivo e profissional, e trabalho honestamente por ele (sem ludibriar ou
prejudicar ninguém) na direção da construção de um “projeto” (fadado a falhas
no planejamento, frustrações e ajustes, obviamente) e, no meio do caminho, esta
escolha pessoal é certeiramente atingida pela interferência de um terceiro,
desestabilizando descaradamente o meu caminho com a promessa ao(s) meu(s)
parceiro(s) de maior satisfação, benefícios, lucro ou felicidade num outro
empreendimento, eu não tenho o direito de me indignar?
Ser tolhido de projetar e perseguir o futuro, bem como de
conservar e desfrutar do presente, não é uma forma de ser roubado? Se fosse com
a sua vida, você não ficaria irado e mergulhado em sentimentos e pensamentos
nada politicamente corretos? Bill, o furioso Michael Douglas de Joel Schumacher, tornou-se icônico neste sentido. E, num exemplo infinitamente menos mass media, Medea (aqui, a de Lars) também. Quem de nós ousaria não
reconhecer a si mesmo em algum traço de sua humanidade?
(Medea, Lars Von Trier, Dinamarca, 1987.)
O fato é que, aos “educados” resta a catarse simbólica de
imaginar-se (num sonho ou delírio) esmagando o crânio do forasteiro, ou imagem
qualquer que o valha. Eu? Eu tenho delírios de um sermão arrasador, de uma lavada discursiva homérica, e procuro
voltar a dormir.
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