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quinta-feira, 8 de março de 2012

Maternidade, Inferno e Sétima Arte - 3ª e última parte

Quando comecei a burilar a ideia que resultaria nesta primeira série temática, sabia que teria dificuldades para realizar recortes, dada a quantidade imensa de obras que, à sua maneira, dariam conta de exemplificar com qualidade o texto. 

A questão da maternidade, como condição para a vida de todas as espécies, é certamente tema fértil. O que me interessava, entretanto, era chamar a atenção para um aspecto em especial: aquelas narrativas fílmicas cujo cerne é a discussão sobre a ambiguidade da figura materna. Ambiguidade esta que se constrói no desvelamento de nuances sombrias da figura maternal sem, contudo, apagar o seu caráter intrinsecamente ligado ao amor, à entrega e  à generosidade. A questão era pensar as obras que se fazem a partir justamente da tensão - e não anulação - entre a natural relação de dependência afetiva construída entre mães e filhos e, concomitantemente, aos males, dores e conflitos resultantes desta.

Ainda assim, seria possível, por exemplo, optar por um recorte de gênero. Coisa que não fiz. Aliás, procurei chamar atenção no primeiro texto da série para o fato de o tema ser fértil a diferentes gêneros, dependendo da condução da tensão exposta, bem como da opção da narrativa por assumir ou não uma postura, digamos, maniqueísta, em relação a essa tensão. Interessavam-me menos as óbvias, embora assustadoras, mães deliberadamente más. O "mal" ao qual o "inferno" do título da série se refere não deveria ser necessariamente um traço acentuado do caráter das mães em questão. E nem dos filhos, simplesmente. Isso serviria muito bem a narrativas de horror, em que mulheres inocentes engendram o filho do "coisa ruim", como tem-se visto nos bons e maus herdeiros de O bebê de Rosimary (1968), de Polanski. Recentemente, aliás, acompanhei a primeira temporada da série American Horror Story (criada por Ryan Murphy e Brad Falchuck), em que esta questão é trabalhada de modo muito competente, numa espécie de homenagem, infelizmente só identificada por aqueles que detêm o repertório dos grandes clássicos do cinema de horror.

Jessica Lange, fenomenal como Constance Langdon em AHS, e a "encomenda"
Penso que uma narrativa torna-se tanto mais complexa e interessante, quanto mais se aproxima da complexidade e ambiguidade intrínsecas à nossa condição enquanto humanos. Nossa tendência a relativizar tudo aquilo para o que não estamos seguros de formar uma opinião é tão prejudicial quanto, entendo, a tendência que temos para não relativizar a forma como produzimos e administramos nossos afetos. 

No campo doa afetos, é preciso que se mergulhe em certezas e posições absolutas, sob o risco de ser-se rotulado sujeito inseguro, mal resolvido ou emocionalmente doente. Que pena. Creio que muito se sofre mundo afora justamente por criarmos expectativas radicais e puristas neste sentido. 

Quero dizer com isso o que muitos já sabem: amor e ódio, desejo e repulsa, paixões que são, coexistem em tensão constante, cujo limiar é sim muito tênue, muito frágil. E nós, humanos, espertinhos que somos, criamos muitas estratégias para mascarar, subverter e descontaminar os nossos afetos, de maneira que possamos simplesmente não questionar o nosso amor, por exemplo, ante os estados de angústia nos quais mergulhamos vida afora.

Em outros termos: não há lei que obrigue mães e filhos a amarem-se incondicional e deliberadamente, de modo linear, indiscutível e blindado em relação aos tropeços da vida. Mas fingimos que há, para que possamos por o dedo em riste no nariz daqueles que esperamos que nos amem, ou que esperam por nós serem amados.

Esta sede por equilíbrio e segurança é, a meu ver, a responsável pela repulsa que experimentamos ante narrativas em que filhos demonstram sentimentos "ruins" em relação a mães - e vice-versa. Reconhecer traços de nossa humanidade em personagens assim tão "cruéis" é uma forma de sermos obrigados a assumir a fragilidade de nossa própria estrutura emocional e é, pessoalmente, o tipo de catarse que mais me interessa.

Charlotte Gainsburg, premiada por sua maternidade em Anticristo
Suspeito que o meu interesse neste viés tenha se materializado a partir de Anticristo (2009), de Lars Von Trier. Ali, narrativa acerca de um processo de assimilação da perda ou, em outras palavras, de um doloroso exercício de expurgação da culpa, "ela" é a mãe que, talvez, tenha sido responsável pela morte do próprio bebê. Diga-se de passagem, em condições bastante favoráveis aos detentores do dedo em riste: durante uma relação sexual. O que se discute ali, a "condição" feminina na cultura patriarcal, remonta simbolicamente ao Édipo freudiano mas, também, à Medeia de Eurípedes.

Hoje, trago um dos filmes mais pungentes ao qual assisti nos últimos tempos: Feliz que minha mãe esteja viva (Je suis heureux que ma mère soit vivante, Fr, 2009), dirigido por Claude e Nathan Miller.

Trata-se de uma história sobre abandono. O que, por si, já permite inferir o seu desenrolar. Mas não é tão simples. A tensão narrativa vai sendo construída primeiramente, no esforço por se retratar o pequeno Thomas Jouvet, que aos cinco anos vive com uma jovem e irresponsável mãe e ajuda a cuidar de seu irmãozinho Patrick, ainda um bebê. A despeito de qualquer dificuldade, Thomas é louco pela mãe. E é este o traço de sua personalidade que conduzirá todos os acontecimentos posteriores ao período em que ele e o irmão são dados para adoção. 


Apesar da "sorte" de terem sido escolhidos juntos por um casal amoroso e bem sucedido, a rejeição de Thomas à vida que lhe foi oferecida e a obsessão em localizar a mãe para finalmente compreender suas razões dominam os 14 anos seguintes. Introvertido, agressivo, contido, o garoto busca exaustivamente por aquela mulher que prometeu a ele que viria buscá-los  - e pelo contato com as limitações e falências dela, inevitavelmente. Não custa sugerir atenção para a tensão sexual que se estabelece, embora de modo muito sutil, realmente velado. Sobre relações incestuosas, aliás, fiz algumas sugestões no segundo texto desta série.

Mais do que isso, seria dar spoilers, e o filme merece ser visto. Menos expressivo na construção de cenas simbólicas que os anteriormente comentados, Feliz que minha mãe esteja viva opta por um realismo bastante útil para a composição de sua atmosfera. Ainda assim, ressalto a breve passagem em que o menino Thomas usa a mãozinha fechada em círculo como uma espécie de luneta para delimitar o foco de seu interesse. Em tempo: o título remete a uma fala de Thomas nos instantes finais da película e estes, eu garanto, são de arrepiar! Espiem!


Ainda, caso o inferno seja a injustiça cometida contra um filho e o percurso doloroso de sua mãe para protegê-lo, há espaço para o belo drama sul-coreano Mother-em busca pela verdade (Madeo, 2009, dir. Joon-ho Bong).
E será o traçado do inferno também a dor de uma mãe cuja filha desaparecida pode ter sido morta num nos ataques terroristas em Londres, como no comovente franco-argelino Destinos Cruzados (London River, 2009, dir. Rachid Bouchareb). Mas, nesses casos, a questão da ambiguidade praticamente desaparece.

3 comentários:

  1. Adorei a série e já estou saudosa por mais. Aliás, tenho a ousada impressão de que você sempre nos deixará assim: com vontade de mais. Adorei também a referência ao "Mother", filme que NÃO assistiria inteiro (pela monotonia causada em minha ansiedade) se não fosse indicação sua. Terei a deliciosa e "árdua" tarefa de assistir todas as outras.
    Agradeço ao deuses ou ao acaso (quem sabe?) por ter te "encontrado". Beijos.
    PS: sendo fã e leitora assídua de seu blog, serei A CHATA do "Comenta aí"!!
    Carolina Panegossi.

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    1. Querida, que bom que gostou! Tenho mais duas séries "no forno", se tudo correr bem, para esta semana e a próxima. Precisei viajar, mas amanhã volto a trabalhar por aqui. Saiba que o feedback é fundamental pra dar o tom dos próximos posts, daí a minha imensa alegria em te ler por aqui! Beijo

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  2. tá demorando uma nova postagem!

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Tento pensar para além do senso comum. Em alguns dias sou mais feliz nisso do que em outros. Quem eu sou não pode ser definido pelo que tenho feito apenas e, francamente, é o que menos importa. Entretanto, para quem quer saber sobre o meu trabalho, o caminho oficial é o http://lattes.cnpq.br/2396739928093839