"A juventude é um erro que o tempo corrige", meus caros. Palavras de uma antiga mestra.
Associar o tempo de vida à experiência e esta à sabedoria já foi uma forma de organizar e hierarquizar sociedades. Indígenas viveram assim, outras sociedades antigas também. A figura do ancião, entretanto, é tão menosprezada em nosso tempo - desprezada mesmo, vez que nada significa além de iminência da morte - que impulsionou uma corrida pela "recuperação" estética e comportamental da juventude que, muitas vezes, beira o caricatural.
Sem cair no reducionismo da autoajuda, creio que todas as idades tem o seu tempo e ter uma "alma jovem" não precisa ser, nem de longe, sinônimo de comportamentos imaturos, posturas anacrônicas e expressões eufêmicas que buscam mascarar as "cicatrizes" impressas em nosso corpo e espírito a medida que vamos vivendo. Entretanto, uma sociedade que avalia e organiza seus membros pelo que fazem, tem e parecem naturalmente ignora - ou pelo menos julga secundário - o que viveram, conhecem, sabem, são.
Assim como Eliane Brum neste interessantíssimo artigo, procuro aceitar a minha finitude inevitável com a consciência de que eu e o tempo temos feito uma troca relativamente justa. O politicamente correto expresso pela linguagem, aos meus olhos, mais do que um exercício de eufemismo mental, é só uma das muitas formas atuais de manifestar a nossa falta de bom senso.
"A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem"
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida
inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também
no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse
o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira
idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e
familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que
estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O
mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como
se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para
todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma
experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só
inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas
atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte.
E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha
entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na
resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum
vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir
a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora
circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é
claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma
obviedade que não nos leva a lugar algum. Que ninguém quer morrer, todo
mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso
medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que
a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer
de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e,
nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor.
Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu
querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos
outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque
o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante
perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha
última chance de ser curiosa.
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não
consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o
contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto,
inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma
lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra
da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa
sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor,
envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa
desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas
numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor
idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem
intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua. O que fazem é
arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando
as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta
confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na
linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra
banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que
diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera,
velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele
que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma
Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou
um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela
língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa
sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se
adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam
fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas
ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar.
Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que
velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos
morrem porque não desistiram de viver.
Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um
livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o pescador não lutaria
com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do
conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma
aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que
velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já
começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem. O tal do
“espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me
acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para
descobrir com quem estão falando. Mas se existe algo bom em envelhecer,
como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é
grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia
antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos
20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero.
Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei
de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me
levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez
mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo
bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais
frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as
memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as
pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais
divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu
espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha
alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar
aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências.
Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na
juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para
saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas
dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos
buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a
velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à
cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a
viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer
uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a
palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para
arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me
sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou
envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro,
espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de
encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
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