Sim, eu prometi um francês, mas resolvi guardá-lo para
amanhã. Apresento hoje um longa canadense vencedor de 25 prêmios em festivais
internacionais.
Em Eu matei minha
mãe (J'ai tué ma mère), de 2009, o
adolescente Hubert (Xavier Dolan) é o filho de Chantale (Anne Dorval) no
primeiro longa roteirizado, produzido, dirigido e estrelado pelo prodígio
Dolan, que declarou tratar-se de uma obra semi-autobiográfica.
Há pouco eu falava ao telefone com minha mãe (é sério, não é
piada) sobre o quanto acredito que, a partir de um determinado momento na vida,
qualquer interferência maternal deixa de ser uma solução para tornar-se um
problema. Na defesa de meu argumento, tentei explicar a ela que esta minha
leitura não tem relação com o compromisso implícito que filhos detêm com pais
para a velhice deles, já que, claro, este foi o primeiro entendimento dela. Nesse
sentido, creio que nem caiba qualquer “porém”.
O fato é que sou facilmente seduzida pela ideia de culpar
tacitamente as mães por certo retardo no amadurecimento das pessoas. Homens e
mulheres, fique claro. Mais homens que mulheres, pelo que tenho visto. Mas não
há regra. Independentemente, vejam, de estarem as pobres matronas cobertas das
melhores intenções.
E por favor, eu tenho coração. Não ignoro o poder e a
relevância do amor materno, tampouco o vazio na vida daqueles que foram dele
privados. Em última instância e na iminência da morte, por exemplo, é por ela
que chamamos. Ou seja, não é sobre isso que escrevo e, sim, minha mãe vai muito
bem, obrigada!
Nada disso invalida, contudo, a impressão que tenho por hora
de que todos atingem um estágio na vida em que aquelas mães que se dedicam intensamente a
resolver problemas dos seus rebentos (muitas vezes como um mecanismo de fuga à
frustração de suas próprias vidas), desde os mais banais, como comprar cuecas,
aos mais elaborados, como provê-los amplamente, tendem a fazer muito mais mal
do que bem aos ex-pimpolhos, permitindo que protelem o desenvolvimento de sua
capacidade e autonomia para tomar decisões, planejar, descobrir o real valor
das coisas e as diretas consequências de suas ações.
Tenho outra impressão, ainda, a de que a cada geração esta
postura tem se acentuado. Mecanismos de compensação para as ausências motivadas
pelo trabalho ou para separações, por exemplo, resultam em adolescentes superficiais, consumistas
e carentes. E aqui, quem realmente entende de comportamento humano e de adolescentes
dirá que estou generalizando. E estou mesmo, e sei bem que a conduta e o
caráter das pessoas não são simplesmente “condicionáveis”.
O inferno ao qual eu me refiro neste drama é construído pelo
olhar do protagonista, detendor do ponto de vista segundo o qual Chantale vai sendo desenhada. Viver com sua mãe lhe é insuportável. Sem ela, entretanto,
aparentemente impossível. Na direção contrária, para Chantale, dar conta da
plenitude de insatisfações do inteligente e provocador Hubert é tarefa
inglória, abrir mão de sua maternidade, impensável.
Entendo que o pacto de expectativas que se firma na relação
mãe e filhos está, invariavelmente, fadado a frustrações. Em alguns casos
maiores que em outros. Algumas vezes, melhor trabalhadas e compreendidas que em
outros. Fato é que não se pode avaliar o currículo antes do parto. Nem de quem
nasce e nem de quem traz à luz. E, ainda que isso fosse possível, seria apenas
uma forma de criar mais expectativas - e arriscar mais frustrações. Somos sujeitos ao erro principalmente
naqueles momentos em que sequer nos damos conta de que poderíamos errar.
Chantale é um doloroso exemplo disso. É dela, no limite, a
culpa pela ausência do pai de Hubert. É ela quem resta estacionada (e incapaz
de compreendê-lo) atravancando seu caminho. Mas, é ela quem o salva. E ele, transgressor,
sensível, inteligente, inquieto, imaturo, esbraveja sua angústia. Filho “aborrecente”,
ele julga absolutamente insuportáveis os gestos, gostos, modos, colocações da
mãe. E é ele quem conduz a negação de sua existência, mediante um julgamento
ora cruel, ora risível, segundo o qual tudo o que orbita o universo de sua mãe
é kitsch, desnecessário, excessivo, superficial, declinável. Assim ele a nega –
e a mata.
Assim, ele prefere a professora e o namorado. Como diria minha mãe, "os de fora".
As tensões entre amor e ódio, rejeição e projeção, repulsa e
desejo estão aqui novamente, desdobradas, diluídas, constantes.
Para completar, importante ressaltar a felicidade de Dolan
na construção da atmosfera sufocante em que o jovem Hubert se encontra. As
cenas em câmera lenta, bem como os sonhos e delírios do garoto dão um tom a um
tempo denso, triste e delicado ao seu ponto de vista sobre a vida e o mundo que
o cerca.
Ah... e há as cores... Mais uma vez, como no caso de Precisamos falar sobre Kevin, nota-se
um trabalho minucioso na composição das cores a cada cena. No caso específico
da “cafonice” de Chantale, por exemplo, até o revestimento do sofá e o lustre
do apartamento transbordam significado.
Trata-se aqui de um capricho adolescente, do drama de uma
mãe incompreendida, de um retrato da crueldade a que estamos fadados todos na
contemporaneidade (dado o poço sem fundo de nossas vontades), de nada disso, de
qualquer outra coisa? Fosse simples assim responder, que graça teria?
Em tempo, o cinema nos presenteia há muito com matéria muito fértil para quem se interessa pelas tensões e problemas resultantes da ambiguidade da relação mãe e filho. Obras como La Luna (La Luna, Ita/Usa, 1979), de Bernardo Bertolucci e Mãe e Filho (Mat i syn, Rus, 1997), de Alexander Sokúrov, são apenas dois belos exemplos destas tensões que enveredam por trilhas incestuosas.
AMANHÃ, O FRANCÊS QUE ENCERRA ESTA SÉRIE.
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