No último sábado, vasculhando insone algo interessante para ler, eis que surge na treva da madrugada esta pílula de lucidez do Zé Miguel justamente sobre o Laertão, meu candidato a prefeita de Sampa...rs... Um xuxu!
Causando - JOSÉ MIGUEL WISNIK
O Globo, 03/03/2012
Antes de mais nada, Laerte é um humorista poeta atuando nesse gênero da narrativa visual curtíssima que é a tira de jornal, conhecido de longa data por criações como os Piratas do Tietê, Los Amigos, o super-herói Overman. Respeitado como um dos melhores do gênero, virou figura nacional polêmica ao passar a se vestir como mulher e ao reivindicar o direito de usar banheiros públicos femininos.
O Globo, 03/03/2012
Antes de mais nada, Laerte é um humorista poeta atuando nesse gênero da narrativa visual curtíssima que é a tira de jornal, conhecido de longa data por criações como os Piratas do Tietê, Los Amigos, o super-herói Overman. Respeitado como um dos melhores do gênero, virou figura nacional polêmica ao passar a se vestir como mulher e ao reivindicar o direito de usar banheiros públicos femininos.
Como é um rapaz de 60 anos sem notável sex-appeal nem masculino nem feminino, e já com uma identidade pública anterior, a sua metamorfose nessa curiosa espécie de tia tem causado um espanto mais variado e difícil de definir do que se fosse provocado pela mais desvairada traveca. É que é mais fácil entender, em geral, a viragem de homem em mulher, e de mulher em homem, do que a permanência nessa zon inclassificável em que o sujeito não cabe nos compartimentos dos gêneros, a exemplo dos banheiros.
Gostei de vê-lo, e vê-la, no “Roda Viva”, da TV Cultura. Laerte, desembaraçado e falante, não parecia em nada com aquele que vi em outras situações, ensimesmado e travado no limite da mudez doentia. As narrativas do seu processo falam de uma crise pessoal profunda em que se confunde a perda de um dos seus três filhos, em acidente, com uma dúvida radical sobre o sentido do trabalho e da vida. Dessa crise paralisante ele saiu através de uma decisão cujo caráter terapêutico, no seu caso, não há como colocar em dúvida: vestir roupitas de mulher, calçar sapatos de salto médio, usar brincos, aplicar-se uma maquilagem leve. A montagem dessa senhora francamente discreta e bem cuidada, ciosa dos seus predicados e dos seus direitos, teve o condão “milagroso” de liberá-lo de sombras e fantasmas.
Fonte: http://i0.ig.com/fw/5x/v6/xv/5xv6xvkmve70spn2tacjr9fil.jpg
O que saiu, afinal, desse armário? O mais curioso é que não se trata simplesmente de uma opção pela homossexualidade, mas antes de uma opção pelo vestuário que confunde os gêneros e rasura as suas fronteiras. Em outras palavras, quem saiu literalmente do armário não foi um homossexual, mas as roupas que vestem um bissexual. A ênfase está em outro lugar.
O direito à opção sexual não se coloca em discussão, está dado como princípio. O que envolve discussão, aqui, é o direito à fantasia, no sentido mais imaginário e no sentido mais literal do termo. Talvez as fantasias cotidianas sejam o núcleo mais forte a alimentar o gênero cartum e as tiras de jornal, seu grande e inesgotável assunto.
No caso de Laerte, sem a menor dúvida. Ele é um mestre da plasticidade desnorteante das nossas fantasias. Já se disse que o processo começou lá, com seu personagem Hugo Baracchini, que, a pretexto de fugir de uma perseguição mafiosa, começa a se travestir de Muriel e acaba adotando o crossdressing.
O que começou na fantasia ficcional se misturou com a realidade quando Laerte resolveu seguir o caminho apontado pelo seu personagem. E, ao fazê-lo, pôs em cena a realidade dos papéis, masculinos e femininos, como feita de fantasias. Evidentemente, não é a toda hora que alguém, ao trazer à tona as suas porções femininas, leva a coisa tão à risca a ponto de sair se vestindo de mulher, ao mesmo tempo reservada e coquete, com espontânea e construída naturalidade. Acho que o crossdressing de Laerte fez com que ele se desvencilhasse de um nó pessoal, pondo-se num desses lugares tão expostos que fazem o sujeito se sentir inatingível, a começar pelos seus próprios medos, que parecem magicamente anulados pela estratégia inesperada. Mais que isso, a solução terapêutica, no caso dele, é uma extensão direta da sua condição de artista.
A montagem bizarra e normalizada de Laerte feminino não deixa de ser uma obra do humorista. Humorista poeta, já disse. Ele-ela encarnou o cartum. Numa coluna chamada “Direitos e avessos”, eu propus aqui um esquema provocador para as identidades masculinas, dizendo que há quatro tipos de homem: o meio-veado (a maioria, saiba disso ou não), o veado inteiro (que o Ocidente recalcou mas que retornou a exigir o seu lugar discursivo pleno), o meio veadointeiro (para dizer em poucas palavras , o inteiro que não se assume) e o veado inteiro-e-meio (a bicha louca, que se afirma exorbitando).
Não vou repetir minhas explicações sobre essa arma lógica de utilidade antimachista. O que eu quero dizer aqui é que a montagem do poeta humorista Laerte produz uma espécie de desvelamento dessa lógica total, porque a personagem que ele produz é um insólito espécime de meio-veado-inteiro-e-meio, desnudando todas as fantasias ao mesmo tempo e livrando-as das classificações.
O tabu dos banheiros é uma decorrência concreta diante da qual Laerte resolveu não recuar, programaticamente, confrontando a senhora que expressou a recusa a conviver no sanitário coletivo com esse ser excrescente. Há lugares no mundo onde o tabu da separação dos gêneros não vigora para banheiros, nem para saunas públicas. É um sinal de civilização, a ser atingido.
No Brasil, esse marco civilizatório é afrontado diariamente, antes disso, nos ônibus apinhados e nos trens. Achei uma passagem às vezes muito direta, no Laerte do “Roda Viva”, do sentimento da conquista pessoal para a conquista coletiva, como se uma coisa resolvesse a outra, com a suspensão imediata da divisão dos banheiros em gêneros. Imediatismo natural em quem fez o lance que fez, abrindo caminhos a percorrer.
Olá Sheila!!! Gosto muito do Laerte (na verdade, gosto mesmo do que fez e faz o Laerte do que propriamente dele...),e ele(a) também seria meu(minha) candidato(a) se ainda votasse em Sampa, por óbvia falta de opção construtiva na capital produtiva do nosso Brasil varonil.
ResponderExcluirNo que diz respeito à discussão de gênero, prefiro não generalizar...rs
Parabéns pelo blog...ganhou um leitor assíduo.
Olá Enzo! Fico muito feliz com a sua visita e espero que veha sempre! Rs... Confesso que sou mais fã do trabalho do Laerte, sobretudo dos "Piratas", do que propriamente do sujeito que, aliás, imagino, deve mesmo preferir ser admirado pelo seu trabalho. Não fosse a candidatura dele(a) apenas uma brincadeira que circula no facebook, eu tampouco poderia concretizar meu voto, já que ainda voto em Guarulhos... Uma pena! Concordo que há sempre muitos riscos com as generalizações mas penso que trazer à baila a questão do travestismo dele, tão inofensivo quanto pessoal, é uma forma de se pensar no que - realmente - merece a atenção, a reflexão e o posicionamento do público. Sobretudo em tempos em que a maioria das pessoas se julga cheia de opinião, mas segue reproduzindo meio sem pensar o senso comum. Enfim, penso que o Wisnik mandou muito bem. Um forte abraço pra você!
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